Já eleito presidente pelo voto popular, em 1950, durante o exílio voluntário na sua fazenda de São Borja (ele não nasceu em São Borja, como quase todos pensam, mas na fazenda “Triunfo”, a 30km da cidade), a todo momento posava um avião com gente para vê-lo e lambê-lo de bajulação. Depois de anos sozinho, rodeado apenas pela peonada e pelo “Anjo Negro”, o Gregório Fortunato, agora era a invasão até do alfaiate para as roupas que deveria usar durante os discursos. Quem olhasse a casa da fazenda, não diria pertencer a quem mandou, absoluto, como ditador, 15 anos no Brasil.
Pequena, sala e três quartos, cozinha e um banheiro, móveis velhos, descascados. O quarto de Getúlio lembrava a modéstia de catre de pensão de estudante. Encostada à janela, a cama patente de molas frouxas, colchão com as depressões de anos de uso. Roupas branca, de fazenda áspera de má qualidade, lençóis e fronhas de tropeiro. Encostado na parede livre, armário de duas portas, sem espelho, via-se, num pau roliço, uma dúzia de cabides com as bombachas, as camisas do sumaríssimo guarda-roupa. Poucos livros, empilhados sem ordem, em cômoda ao lado da porta.
Em outra cômoda, a vitrola portátil, tocada a manivela, uma dezena de discos do sanfoneiro Pedro Raymundo, que teve sua época de sucesso, com “Meu Coração Te Fala” e “Escadaria”, por exemplo. Getúlio mandava buscá-lo na fronteira (com a Argentina) e passava a noite entre a sanfona, os charutos e um ou outro trago de uísque. Gregório ouvia sem dar uma palavra, cara amarrada, enquanto a peonada ria e se divertia com a música. Na varanda larga, Getúlio equilibrava o corpo roliço, enganchado na rede, as pernas curtas, pés calçados de chinelos, pendurados nos dedos.
No mais, a vestimenta típica, limpa e com sinais de uso nos puídos das mangas e do colarinho; bombachas, blusão folgado, o cinturão largo cingindo a barriga volumosa. E ali, durante quase três anos, o chefe da Revolução de 30, o ditador do Estado Novo, o político que não roubou um vintém no poder, o homem público de comprovada honestidade, o senador que não exerceu o mandato (passou uns dias no Congresso, teve um forte bate-boca com o general Euclides Figueiredo e pediu o boné), esperou, com paciência de eremita, que o fossem buscar.
A despeito de seu estilo caudilhesco, é possível que a História venha um dia a reconhecer, sem paixão, que Getúlio Vargas foi um momento importante em nossa trajetória republicana. E que, por paus e por pedras, numa fase ideologicamente confusa, tenha contribuído decisivamente para inaugurar no Brasil, com o atraso de três decênios, o conturbado século XX. Tudo acabou – parece incrível – há exatos 59 anos, com aquele tiro no Catete.
E lá está ele, sepultado em São Borja. E não está só. A seu lado, por desejo da família de cada um, estão o ex-presidente João Goulart, o ex-governador do Rio de Janeiro, deputado e senador Leonel Brizola e o guarda-costa de sempre, o “anjo negro” Gregório Fortunato, assassinado na prisão durante uma briga, conforme uma versão muito mal contada.